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Zara

3821 palavras·18 minutos

Se chamamos de Inferno onde não terminam lamentações e ranger de dentes, com que nome faremos jus àquele lugar ainda mais terrível, onde não se conhece nem prazer e nem dor? Tente me entender, tente se colocar no meu lugar:

Nesta cama, os dias em pares, os meses em blocos indistintos, os anos em momentos cruelmente fugidios, você vive entre a realidade e o virtual. Como um anfíbio repugnante, comedor do lótus, menos que homem, ímpar, desconhecedor do menor desconforto ou prazer. Anestesiado. Vivo e morto.

É próprio da tolice humana tomar por cura das moléstias o alívio dos sintomas: um dia, cansado da sua maldita analgesia, você decide comprar um visor de realidade virtual. Virtual experiences, você ouviu dizer, filmes interativos em VR, têm o poder de enganar o cérebro a sentir as mais variadas e peculiares experiências.

Uma semana depois, seus pais batem na porta do seu quarto, uma encomenda chegou. Você desembrulha o visor. Conecta. Liga. Ativa. “Vídeo demonstrativo.”

Você está numa sala branca. “Boas-vindas à sua primeira virtual experience”, diz uma maido japonesa à sua frente. Parece incerta do que dizer a seguir, “hum… s-senpai, já ouviu aquele ditado que a primeira impressão é a que fica? Se sim, balance a cabeça”, você balança, ela continua, “pois é, andei trabalhando duro para montar uma introdução que impressionaria você, mas continuo muito confusa. Você pode me ajudar?”. Você diz que sim, ela dá um suspiro de alívio, “o-obrigada, senpai! Mas, primeiro, preciso confirmar a sua idade…”, você sente as bochechas enrubescerem, confirma a maioridade num popup que aparece na tela, “ótimo”, ela diz, “agora escolha se prefere uma introdução mais segura ou uma mais emocionante”.

Você hesita. Continua com o rosto quente de vergonha. Aperta o botão em formato de coração que diz ‘começar introdução emocionante’. O rosto inocente da menina se torna um riso diabólico. “Ótima escolha, senpai, a gente se vê em alguns minutos”, ela diz e a cena esmaece.

Você acorda num bar. Está tonto. Nota uma bandeira da Rússia na parede. Vodca à frente, pela metade (quase dá para sentir o cheiro). Dois homens o encaram. O barman lhe entrega outro copo, treme, olhos arregalados, desenha palavras russas com os lábios, certifica-se que os outros dois não se deram conta do aviso que supõe ter dado a você.

Os homens se levantam e como que deslizam até você. Um saca o porrete, o outro prepara os punhos. Você se levanta: tarde demais, um deles aterriza um soco direto na sua clavícula, você pode sentir o ar sendo expulso dos pulmões. Você tomba para trás e o outro dá uma porretada na sua cara, a primeira dor em semanas! Uma nuvem escarlate pinta o chão com o seu sangue. O choque é muito, você tira o visor, está suado e ofegante: as virtual experiences funcionam.

A novidade durou seis meses. Um semestre retornando àquele mesmo bar, apanhando dos mesmos russos, encontrando a diabólica anfitriã ao final. Enquanto isso, você aprendia sobre o mundo da realidade virtual, “AEVUM”, como o chamam os usuários assíduos. Descobriu muitas coisas: quantas produtoras de experiences profissionais existem, o preço alto; as experiences amadoras feitas no Terceiro Mundo, o preço mais acessível.

Um dia, você acorda na Rússia. Tudo é familiar. Há uma estranheza que acompanha a familiaridade. Tudo é familiar e, por isso, tudo é novo: o nervoso barman fala alguma coisa, não importa. Você nota a luz artificial que o destaca do fundo escuro. Os russos mal-encarados se levantam, mas você está prestando atenção ao braço etéreo do operador de câmera, que se imanentiza na cena por um breve segundo. Você tomba para trás e confirma que, como descoberto por @aion7 em AEVUM Forums, o pacote de sangue estoura momentos antes do impacto do porrete.

A visão duplica agora. Hemorragia interna. Não é o melhor efeito visual: é para esconder a arma falsa. Uma sentença. Um tiro. A maido japonesa aparece e desdenha do seu medo. Dessa forma, acaba. O menu: assistir de novo? “Não.” Desta vez, você não sentiu nada. Familiar. Familiar demais.

Por sorte, vazaram uma experience nova esses dias em AEVUM Forums e você fez o download antes de derrubarem por direitos autorais. É uma experience profissional, com selo de “verificação”. O visor carrega sem protestar.

Você acorda na África, talvez no México, está tudo amarelo. É uma cabana. Murmúrios lá fora. Você se esconde atrás duma caixa, em que está escrito “Ivoor”.

Uma mulher geme de terror ao seu lado, é bonita demais, pele perfeita, negro uniforme, cabelos macios: uma atriz. Grita quando invadem a choupana. Três homens, roupas do século retrasado, parece que o estúdio está testando o mercado de experiences históricas. A silhueta tripla encobre o sol como um eclipsem Deixam-na para trás, você é o alvo.

Sol escaldante, terra seca. Um pé na sua cara, dá até para sentir. Chutes na costela. É a primeira sensação desde ontem de manhã. Vira a cabeça, talvez por instinto; vê a sombra da câmera (“puta merda!”): a constatação é como anestesia. Um grito ameaçador, você já não se importa. O outro empunha um facão. Você dá um comando para o visor, tudo escurece. “Tem certeza que deseja encerrar esta virtual experience? Perderá todo progresso.”

Você tira o visor VR. O cheiro de suor do quarto escuro inunda as narinas. O LED fraco do visor dita a cor dos móveis e projeta sombras disformes nas paredes. As pernas protestam para se mover. As embalagens usadas estalam debaixo dos pés. Banheiro. Energético. Batata frita amanhecida. Nem sequer o gosto. Nem sequer o cheiro.

Deita-se na cama, coloca o visor, ativa o modo AR, abre o navegador. Pesquisa “AEVUM Forums”. Você precisa sentir algo: entra na sessão “Amateur”, os criadores de conteúdo aqui não têm os melhores equipamentos e muitos deles fazem parte de estúdios fajutos do Terceiro Mundo (new slavery, content slavery), mas um ou outro é verdadeiro amador em situações reais e é isso que você procura.

Um letreiro chama a atenção: “Zara Efafazela’s Suicide (REAL! 500% Amateur—Suicide in South Africa!)” Mil comentários, 90% de avaliações positivas. Download, por que não?

Modo VR. “Carregar conteúdo desconhecido?” “É claro.”

Você está num apartamento. Mesa de compensado, quadros de compensado, “Made in Vietnam”, sofá de couro falso, espelhos de acrílico. Parece a vida real, estúdios sempre têm os melhores móveis, pessoas reais, como você, levam a vida sobrevoando merda. Você levanta e olha no espelho: é uma garota. Passa pela costela-de-Adão de plástico, sobre o tapete de junco falso, até uma janela. Olha para baixo. Um frio sobe da barriga até as têmporas. Deve ser o milésimo andar.

Ela murmura alguma coisa. Você não entende. Sem cerimônia, pula. A adrenalina queima o seu peito como cocaína, falta ar nos pulmões. Talvez você tenha gritado. Tudo gira: você se sente vivo! A queda de duas décadas passa num segundo, a merda que você chama de vida passa diante dos seus olhos. E agora? O que virá? Você se une ao chão numa explosão carmesim. Gritos. Poeira. Uma poça vermelha flui dos seus restos compactados. Uma multidão ao seu redor. (Time-lapse, o editor teve o bom-senso de acelerar essa parte.) Anoitece. Giroflex, sirene, fita de contenção. Dois uniformizados inspecionam a câmera. Suas fardas leem “Polisie van Aevum". Tudo escurece. “Assistir de novo?” “Sim.”

Três meses depois. “‘Zara Efafazela’s Suicide’ and Its Dangerous Legacy” é a manchete da Times. A matéria traz o depoimento da mãe. (“A polícia tentou tirar a virtual experience do ar, mas ainda tem cópia por aí”, a mãe de Zara explicou.) Você revê a virtual experience todos os dias. Às vezes, repetidamente. É uma pedra preciosa. Alguns adolescentes fizeram vídeos semelhantes, todos morreram, é claro, mas nenhum tinha a qualidade de gravação de “Zara Efafazela’s Suicide”

Zara se tornou um ídolo. Depois que a polícia fechou AEVUM Forums, um certo ZARA Forums apareceu na deep web. Você o visita todos os dias. Veste-se como Zara, ouve a playlist* que escutava quando pulou da janela, lê seus poemas. (A mãe continuou, “ela não dava nenhum sinal de que…”, mas, inconsolável, não conseguiu terminar a frase.)

Certo dia, um usuário do fórum, @zarahead, invadiu o apartamento abandonado de Zara, o escaneou numa virtual experience e liberou de graça na internet. Você esteve naquele apartamento todos os dias desde então. (“Eu sou sozinha”, Senhorita Efafazela lamentou, “Não consegui mais morar no lugar em que… e ninguém quer comprar um apartamento com uma história dessas.”) Às vezes, é vergonhoso dizer, você gosta de fechar os olhos e imaginar que Zara está ali, logo fora da sua vista—e você sente um calor subir até as bochechas.

Você começou a escrever poemas na parede.

“I wish

I could save her

In some sort of time-machine.”

Ah, se estivesse viva! Ah, se vocês tivessem se conhecido: que mão ou artifício terrível entorpeceria tamanha felicidade? (“Não consigo entender até hoje. Ela era popular na escola”, Senhorita Efafazela continuou, “tinha vários amigos, um namorado…”)

Ainda assim, há um problema. No download disponibilizado por @zarahead, só é possível caminhar na sala e cozinha do apartamento. O corredor, as janelas, os banheiros são só fotos, imagens impenetráveis, como que pintadas numa parede invisível. Questionado, ele só respondeu “o resto da experience existe”, e, num outro comentário, “disponibilizá-las está além da minha alçada. Sigam as ‘migalhas de pão’”.

O termo “migalhas de pão” confundiu os usuários do fórum por um tempo até que o sempre atento @aion7 observou uma estranha mensagem deixada na cozinha, perto dum saco de pão de forma:

“Essas e mil tragediadinhas

Distendem os parcos dividendos de seu gelado delírio

Excitam a membrana quando o sentido atibiou

Com pungentes molhos, multiplicam variedades

Num deserto de espelhos.

A passagem, você acha, é certamente inspiradora. Pressente-se, até mesmo, um vago sentido, da compreensão do qual você está aquém. As discussões no fórum são infrutíferas: alguém descobre a origem do texto, um poema inglês do século XX; outros encontram análises que ligam o poema à Primeira Guerra Mundial. Mas o que teria a guerra a ver com Zara?

Você pensa em possíveis respostas. Sabe ou, ao menos, intui que se trata de um enigma. Ninguém sabe a resposta e a fama de ser o primeiro a encontrá-la está a conquista.

Você tira o visor. A treva do quarto. Cheiro de poeira. Dói levantar-se. “Por quanto tempo fiquei na mesma posição?” Os músculos das pernas parecem um tanto menores do que o normal. Você tem muita sede.

Ao passo que as pernas falham, você lança gemidos de dor tremulantes num corredor vazio. Cozinha. Muito além da meia-noite. O frio da água invade a sua garganta como o primeiro gole de ar de um recém-nascido, inédito, diferente. “Quando foi a última vez que bebi um copo d’água?” Você não sabe responder.

Há uma velha história chinesa. Ela emerge da memória sem convite. Uma velha história em que um velho chinês sonha em ser uma borboleta. Ele acorda confuso: é um homem que sonhou que era uma borboleta ou uma borboleta que sonha que é homem? A confusão é tão absurda, que ele recebe dos seus amigos o apelido de “Confúcio”.

Você avista um reflexo no vidro do copo d’água e se assusta: parece um cadáver. Encara a figura de novo e o susto se torna um misto de incredulidade e decepção: é o seu reflexo. Como pode ter mudado tanto? Quanto tempo ficou deitado naquela cama?

O corredor é como um abismo. “Quem sou eu?”, você se pergunta, “aquele reflexo ainda é meu?”. Você se sente incapaz de reclamá-lo para si, pois que território deve posses a um estrangeiro? E este é você: um estrangeiro no mundo real. Por que o abandonou? É uma pergunta e tanto. Você vasculha a memória pela resposta: analgesia, você o abandonou porque desejava sentir algo, qualquer coisa, e encontrou a sua resposta nas virtual experiences, essas… “mil tragediadinhas,” a frase assalta a mente com escárnio, como um espírito travesso, que escondeu um tesouro sob o nariz de todos que o procuravam.

O poema se torna uma pintura mental: Zara. Sua vida vazia. Seu senso de fracasso e estagnação. Suas fugas para o mundo virtual. Com o tempo, a dor dá lugar à analgesia e a vida se torna um “delírio gelado.” Ela entende, fugir da dor era um erro. Agora, ela busca sentir algo e encontra uma resposta nas virtual experiences. Então, ela se dá conta de algo tão óbvio, que ninguém percebera: independente de seu conteúdo, virtual experiences mudam o usuário fundamentalmente. “O meio é a mensagem,” ou algo assim, um professor americano ou inglês disse uma vez. Em outras palavras, Zara percebeu, virtual experiences não são, primariamente, ferramentas de fuga, mas de controle—e vale a pena dominá-las.

Nos próximo meses, Zara compra equipamentos de alta qualidade para gravar virtual experiences. Como ela conseguiu? Você não sabe, mas tem três hipóteses: ou tinha pais ricos, ou fez dinheiro on-line, ou se endividou sabendo que jamais pagaria. Ela, então, estuda e planeja, detalhe por detalhe, uma virtual experience perfeita. Consegue imaginar precisamente como seria, pois é uma consumidora tão ávida de experiences que pode se considerar uma connoisseuse.

Você ainda imagina um solilóquio: “eu sou o mundo”, ela diz, “da forma única como ele, aos meus olhos, se desenrola. Tenho um plano especial para este mundo: à minha imagem o recriarei. Eu, origem independente; os demais seres humanos, meras ‘variedades num deserto de espelhos’ ”.

Você entende o enigma agora. Coloca o visor, carrega a experience do apartamento. Corre para o espelho, não tem reflexo. Você o toca, ele muda, um reflexo aparece: não o seu, mas de Zara, como no vídeo. Você é Zara. Ainda mais: você entende Zara, entende como pensava, entende que foi tapeado por ela: como o mundo ficou sabendo dela? Oras, porque ela olhou no espelho durante a gravação, para que pudéssemos ver o seu rosto. Tudo foi planejado.

Mais tarde, no fórum, você relata a descoberta. @Zarahead responde com prontidão, “não sei se você é um gênio ou só um maluco”, escreve, “mas, sim, Zara olhou para o espelho de propósito. Quanto ao resto de sua explicação, sugiro que não se deixe levar pela imaginação, mas continue estudando a vida de Zara”.

“Estudar a vida de Zara” é a próxima dica. Você volta ao apartamento. Com o enigma do espelho resolvido, o corredor e os quartos se tornaram virtual experiences, agora você pode andar por eles e interagir com o que contêm. O seu plano é viver por uma semana, pelo menos, como Zara naquele apartamento. Tem o quarto, corredor, sala e cozinha à sua disposição, só não poderá simular as coisas que ela faria no banheiro.

Antes que possa fazer qualquer coisa, batem à porta. “Filho”, você escuta e tira o visor, é alguém no mundo real, “quero falar com você”, é a voz da sua mãe. Você tira o visor e abre a porta do quarto. “Filho”, diz, “seu pai e eu estávamos preocupados”, você faz a menção de responder, mas as palavras não saem, ela continua, “venha passar um tempo conosco”.

Você aceita e a segue até a sala. Seu pai está de pijama em frente à televisão, “campeão, nem te conto”, ele diz, “a Webflix acabou de lançar uma série daquele livro ‘The Jaunt’, se lembra?”. Você acena que sim, seu pai costumava a colocar audiolivros de Stephen King no carro quando o levava à escola, ‘The Jaunt’ era um de seus favoritos. “Senta com seu pai, vou pegar a pipoca”, sua mãe diz.

Por várias horas, vocês assistem episódio por episódio sem dar uma única palavra um com o outro. A adaptação não é das melhores e, depois do segundo episódio, você decide fantasiar que faz uma longa viagem com Zara, em que conversam sem conseguir tirar o olhar um do outro. Perto da meia-noite, seus pais adormecem e você consegue sair de fininho.

De volta à realidade virtual, você decide checar o seu tópico no fórum. Oitenta novas mensagens: alguém descobriu a resposta ao novo enigma antes de você. “É o diário, ao lado da cama dela”, uma mensagem do fórum diz, “está aberto no dia em que ela morreu”.

“Ué? Pensei que todos já soubesse disso”, você responde, “por isso, nem mencionei a resposta no tópico”. Você se sente mal por mentir, mas sabe que teria resolvido o enigma muito antes se não fosse a distração com seus pais mais cedo. Você abre a vitual experience, corre até o quarto, lê o diário:

“Cheque o seu inbox.

Inbox. “Uma nova mensagem. Ler?” “Sim.” “Caro…”, é o seu nome real, você não sabe como sabem dele, “preciso confessar a verdade: não estou morta. Venho o observando todo esse tempo, você é o que melhor me entende entre todos neste mundo. Deixei um presente para você nas coordenadas abaixo. Att. Zara.”

Você copia as coordenadas da mensagem e cola no mapa, “33.07495174511077; -83.22950996430335”. Elas marcam um campo a alguns quilômetros da sua casa. Com desgosto, você constata que a rua mais próxima do campo termina no primeiro terço do caminho: você terá de andar o resto a pé.

Você decide que não tem tempo a perder. Precisa chegar lá antes que os outros usuários do fórum consigam os seus presentes, se é que já não conseguiram. O corpo dói para se levantar, como de costume. Você pondera se deve tomar banho. Decide que não. Troca de roupa e sai a pé.

Na saída, a sua mãe o detém embasbacada. “O que você está fazendo? Quer dizer, você vai… sair de casa?”, sorri. Nota a sua cara de confusão e se corrige, “não, não quero dizer que não deve ir, muito pelo contrário”, ela diz, “tome cuidado, mas vá sim. Até mais tarde!”, diz e o empurra para fora, com medo de você mudar de ideia.

Tanto tempo no quarto escuro fez com que você se esquecesse daquela coisa brilhante e escaldante no céu. Sua pele protesta como um animal indefeso encurralado pelo predador. Como se pega ônibus mesmo? Qual você deve pegar? Onde fica a parada?

Horas depois, um táxi o desova no fim da rua que dá para o campo. O taxista parece aliviado em se livrar de você. Você inspeciona o seu caminho a frente, o desafio acaba de atingir um nível ainda mais baixo: você está nos pés de uma longa subida.

Apesar do calor de terríveis 14 °C, você sobe por vinte longos minutos e se pergunta por que ainda não vê sinal de Zara. Sem fôlego, você desaba na grama. Sente partes do corpo das quais nem sabia da existência. O suor já é tanto que suas roupas assumiram o aspecto de embalagens a vácuo, coladas à pele.

A respiração se acalma. Contra a intuição, você resolve olhar para trás e checar o quanto já caminhou. Você suspira: cobriu, no máximo, uns duzentos metros. Nessa velocidade, só chegará ao destino à noite. Não importa, Zara vale o esforço, você decide.

Você se levanta e resolve dobrar o passo. Os seus pés e joelhos estão tão doloridos que você reclama a cada passo, mas não desiste da marcha. Anda por mais meia hora e o mundo escurece. Quando você recobra a consciência, depara-se com a grama ensanguentada: o sangue é do nariz, você deu de cara com o chão quando desmaiou. O rosto está inchado e pulsa com o frio da noite. Sim, é noite, você não sabe por quantas horas ficou ali.

Olha para o destino. Você está na metade do caminho. Não aguenta mais dar um passo sequer, mas imagina Zara ao seu lado, gritando palavras de incentivo. Na verdade, é você quem está gritando para si palavras de incentivo. “Você consegue! Falta pouco!”

Já está amanhecendo quando você chega ao topo. Quase se pergunta se os seus pais estão preocupados, mas se lembra que, provavelmente, passaram a noite assistindo Webflix e não se deram conta da sua ausência.

No alto, olha para trás e dá um suspiro. O rosto já não dói tanto agora e o nariz, felizmente, não parece estar quebrado. Que caminho longo, você pensa, sem conseguir acreditar que andou tudo aquilo.

No chão, você acha uma caixa fechada, endereçado com o seu nome. É uma caixa leve e grande o suficiente para apoiar com uma mão e abrir com a outra. De dentro da caixa, você tira uma carta:

“Com efeito, Zara está morta”, você lê com um susto, “e você nunca a conheceu. A novidade do seu suicídio já acabou e a mídia não fala mais nela. Agora, Zara só permanece viva em dois lugares: nas dolorosas memórias da mãe e na mente depravada de pessoas que, como ela, se matariam para sentir algo.”

“Para ela, oferecemos uma solução. Nós a circundamos, éramos parte de toda a sua vida. Nós éramos seus amigos, seu namorado, seus colegas, ainda que nada passasse de palavras on-line e uma fuga incremental da realidade. Quando a hora chegou em que sentiamos que nossa relação chegava ao fim, Zara concordou em espalhar a nossa palavra com um ato final de sacrifício.”

“Agora, é a sua vez de fazer o mesmo. Nós demos tudo que você queria: Zara, sua vida, onde vivia, o que pensava, sua aparência e, até mesmo, o seu amor. Por fim, bolamos um desafio para cada usuário do fórum, com o papel de provar como é delicioso o sacrifício.”

“Distribuiremos pela internet e para jornais as gravações que fizemos de suas ações no apartamento de Zara. Sim, você e mais dezoito usuários foram gravados. Não há retorno agora. O limbo em que vivia acabou e deu lugar para um inferno.”

“Há, porém, uma esperança: a de sentir algo por uma última vez. Você está na beira de uma reserva florestal, ela oferece muitas maneiras de morrer. Sugerimos que escolha uma bem criativa: será a melhor sensação que já teve.”

“Assinado: Administradores do ZARAForums.

É muito palavreado para nada. Quem disse que você quer voltar? Tomou a sua decisão depois das primeiras palavras, “com efeito, Zara está morta e você nunca a conheceu”, besteira: ela estava ali do seu lado o tempo todo.

Juntos, vocês vagaram pela reserva. Ora certos de seu destino, ora com muita hesitação. No segundo dia, você sentiu fome e Zara lhe deu umas frutinhas que achou no chão. No quinto dia, ela desapareceu. No oitavo, reapareceu com outras três Zaras, todas fardadas.

“Acho que o encontramos”, uma delas diz a um walkie-talkie, “ele parece em choque”. Elas o conduziram a uma viatura e, então, a uma sala muito branca, onde você jurava existir um alçapão que dava num bar russo. Às vezes, Zara o visitava e falava sobre a nova série na Webflix e você adorava escutá-la. Outras vezes, ela vestia um jaleco e obrigava você a fazer exames estranhos.

Se chamamos de Paraíso onde não terminam os prazeres eternos, como que nome faremos jus a este lugar ainda mais divino? Não tente me entender. Deixe-me em paz… em paz.